Precisamos trair mais os nossos pais
Os meus pais e eu temos acordos... acordos claros que de tão claros são invisíveis.
Acordos que firmamos em momentos que não lembro, com tintas que não reconheço e que mesmo assim foram protocolados com carimbos sempiternos e carentes de caducidade e agora fazem parte oficial do registro da minha personalidade, dos emolumentos dos meus sonhos e das protocolares melancolias amareladas e com cheiro de mofo que me causam uma rinite emocional (e às vezes até física) que me deixa os olhos marejados e a respiração curta.
Encontrar esses contratos é algo que nem sempre busco.
O que ocorre, na verdade, é que de tempos em tempos preciso me enfrentar às consequências impostas pela jurisprudência afetiva por ter deixado de respeitar alguma cláusula do contrato tristemente celebrado com eles.
Antes, na minha longa e danina imaturidade dos meus anos jovens, fiz o meu esforço mais ignorante para respeitar cada letrinha do texto em questão, inconscientemente decorado, sem maiores desafios a não ser os impostos pelo mesmo sistema fiscal, que cobrava uma alta taxa e juros abusivos, pagáveis nas nada promissoras letras a seguir:
Amores fracassados, amizades intensas, descontroladas e esquecidas pouco depois, trabalhos mal remunerados e instáveis, recomeços constantes nas áreas chave da minha vida, uma constante busca pela pobreza financeira, pela falta, pelo não, pelo alarde da vida do lutador, o cansaço de quem se assusta com a conquista, que abomina a liberdade, que é refém das circunstâncias. Um constante meio caminho, completo meia boca, tudo prestes a virar nada, para poder encenar o show da reconstrução. Ruptura, mentira, endividamento, dissimulação, heroísmo, substâncias.
Algo de autodestruição, com público preferivelmente
Relações cínicas, palavras desajeitadas, sonhos mirabolantes, opiniões obtusas e não solicitadas. Famílias postiças, hedonismos e culpas, abandono parental. Ansiedade generalizada, ódio social e uma total incapacidade de respeitar outros acordos, com outros celebrantes, em outras latitudes e um ou outro outrossim.
O combinado sai caro.
O preço que pagamos para sermos cuidados, alimentados, nutridos e mantidos às vezes é alto. O preço que pagamos para reconhecer o árduo trabalho de quem fez o que podia com o que tinha sem cobranças retroativas pode ser desanimador. Não há parcelamento nem condições disponíveis. Há ainda um apego aos velhos documentos. Uma certa paralisia que impede jogar fora de vez o sistema que, aos muitos trancos e íngremes barrancos nos trouxe até aqui.
Hoje, menos moço e menos assustadiço, ainda sofro intimações para me apresentar perante autoridades obsoletas de governos distantes e fraudulentos. Ainda sou chamado a depor.
São notificações que, em 90% dos casos, jogo fora sem ler, como uma correspondência que não mais corresponde às minhas circunstâncias atuais, às vezes as amasso com um sorriso, às vezes as rasgo enquanto escovo os dentes ou abro uma lata de atum, sem nem de fato me atentar ao seu conteúdo, nem pela mais simples curiosidade as abro mais.
Mas de tempos em tempos, uma vez ou outra, uma presença fantasmagórica vem e toca a campainha.
Um cobrador de outrora, famoso pela sua severidade e implacabilidade, mas que se adivinha fraco entre suas vestes desatualizadas. Não é um papel que ele traz, é um papel que ele representa.
Um fiscal, que possivelmente pela sua força constitutiva, nem se deu ao trabalho de aceitar o novo regime plural e democrático que se instaurou aqui dentro quando os laços do antigo governo se desfizeram em alguns divãs e conversas com outros revolucionários.
De tempos em tempos se apresenta esta sombra, que me assusta e me congela.
Um lembrete de que os contratos não podem ser rasgados, ignorados ou desobedecidas. que os contratos foram feitos para serem respeitados. que as partes envolvidas estão sendo lesadas, traídas e, que mesmo nem sendo mais partes reconhecidas, vigentes, os contratos continuam a valer.
“O que você está prestes a fazer, é uma quebra”, ele me diz, sem sequer mexer um músculo da cara.
Uma inadimplência, uma infração, uma inobservância, uma TRANSGRESSÃO.
Sim.
Esses dias, meu vizinho amado, professor de altas estirpes financeiras e econômicas deste e de outros países, me disse algo que, talvez produto da minha instabilidade emocional que já dura um mês (o que dura a visita deste meu cobrador), ficou ressoando na minha cabeça: “o melhor contrato é aquele que não precisa ser acionado”
Nada poderia ser mais eficiente do que aquilo que não precisa ser lembrado, que foi inculcado, inoculado e inserido, misturado com suas células, sua neurologia e sua própria constituição… relembramos da nossa infância em termos confusos, em momentos esparsos, mas os contratos foram assinados.
Quando recebo esta visita (e não me acontecia já faz uns 3 ou 4 anos) sei que não o posso despejar. Aprendi que a melhor forma de enfrentar essa assombração é procurando os tais dos contratos nas gavetas mais profundas e mais difíceis de abrir do meu coração, que no meu caso fica no armário da memória.
Como é chato tentar achar o que nem eu sei que estou procurando. Algum contrato velho? Uma letra? Um recibo ou um canhoto?
Como saber? Meu visitante, que não tem nada de impaciente, aguarda por mim cada vez mais à vontade. Se senta, puxa um cigarro, tira o paletó e afrouxa o nó da garganta.
Me dá calafrio ver que esta sensação se ajeita bem na minha frente. Deixo de sair. Deixo de me exercitar. Começo a fumar um pouco mais, a beber um pouco mais. Ando impaciente, desatento, cuidar dos meus é um esforço, durmo mal, fico cansado e interrompo, para economizar energia, as minhas atividades besta que me dão prazer. Estou algo irritado, algo neurótico, algo pessimista. Que merda estou procurando, afinal?
Sem querer, acho.
Acho um papel que estava procurando. Sorrio. Depois emendo uma risada e um choro.
Tá aqui, filho da puta.
Achei o termo que estava procurando.
Uma camada grossa de pó, acumulado por 46 anos ou mais, deixou algumas letras e expressões pouco nítidas, mas entreabrindo os olhos e entre fechando a porta consigo adivinhar o que está escrito aqui, passo à leitura:
Teu pai é o homem mais inteligente do mundo, e é pobre.
É pobre porque assim o quis, assim são os poetas e sonhadores.
É impossível ser um poeta e um sonhador em condições de abundância. Esse pai que você admira e ama e quer sempre ter por perto, aquele homem que você considera o mais inteligente, esperto, forte e bonito do planeta, é um homem que está com as calças rasgadas, as meias trocadas, os óculos quebrados, e isso faz menor diferença com essa luz que bate tão bonito nele, advinda das janelas enferrujadas de mais algum apartamento temporário, essa fumaça do café sai tão perfeita da xícara dele, ele é o melhor homem da terra.
Vocês só serão felizes nesta circunstância.
Morando de favor nos fundos de uma amiga da sua avó.
Vocês estarão felizes em cada uma das 19 “casas” que vão morar ao longo de 10 anos que permanecerão juntos. Serão seus anos mais felizes! Sinta uma saudade inexplicável desse tempo do barrio, do mercado que vende tampinhas de óleo e saquinhos individuais de arroz, salsichas por unidade, das paredes que estufam por conta do sol, dos ratos visitantes, da total ausência de visitas, dessa sujeira encardida que sua mãe teima em disfarçar, limpar e eliminar, mal sabendo que essa será a conexão secreta de vocês, essa dupla sensacional que você forma com seu pai, a criança ansiosa, explosiva e suja de acidentes noturnos e o super pai poeta e abatido, o que pode ser melhor do que isso? desconheço
Você e seu pai, seu pai e você, felizes, juntos, pra sempre.
Esse homem, tão inteligente e cansado, tem algo importante a dizer, deixe-o falar. Não seria de bom tom se você saísse escrevendo as poesias que seu pai iria ainda dizer. Neste documento fica declarada sua total compreensão do cansaço fatal deste homem de menos de 30 anos, esgotado e feito um farrapo pela indústria dos aspiradores de pó, das calculadoras solares, da revenda de livros, do desenho publicitário, do setor dos xerox, que até isso ele teve que engolir, trabalhar tirando xerox, para poder te dar…
…TUDO o que você precisava, mesmo que esse tudo fosse sua avó que trazia, sua mãe que providenciava.
Não se esqueça das INTENÇÕES do seu pai, que mesmo que não sejam claras, nem hoje nem amanhã, são veneráveis, como a sua própria existência e seu nome sagrado, nome este que você carregará pela vida toda,
mesmo René-gando,
mesmo aborrecido,
mesmo Leonardo,
você será Raul.
Respeite esse nome e o que ele representa: este é o acordo.
Não é possível ser feliz na estabilidade, é na luta constante que se forja um homem, mesmo que esse homem fuja quando você fizer 11 anos.
Se alguma vez a abundância, a realização ou a conquista forem grandes demais, lembre que convém se boicotar, se reduzir e se anular, para não impedir a performance do sofredor que reconstrói, o eterno destruído, o sempre destronado, o desastrado contumaz, o coitado que nada dá certo e tudo conspira em conta dele.
Mesmo abandonado por ele, existe uma maneira de honrar sua memória, de trazê-lo ao presente, espera-se que você faça disso um dos pilares da sua vida.
Cumpra-se e esqueça-se,
Assinado em algum momento da minha infância: eu.
Achei o filha da puta documento.
É isso. Agora é descer lá e enfrentar esse meu fantasma com a pouca energia que me resta, pois o distrato é o que deve ser feito, e para ser desfeito, é preciso ter achado o texto. Esse é meu texto de hoje, mas possivelmente não será o mesmo texto que virá em uma semana.
Amo o meu vizinho, e sei que sua visão é a mais sensata possível.
Mas na comarca do coração, o melhor contrato é aquele que se refaz.
Custe o que custar.